Era um relacionamento conturbado. Com brigas sem palavras e
rompimento interrompidos pela necessidade de, mesmo que não valesse à pena,
ficar um com o outro, ainda que a casa caia.
E está caindo, desmoronando e, de repente, são só escombros.
Ela fala demais. Ele ouve de menos e não diz nada.
- Um grande nada, é isso que nós temos – ela concluiu certa
noite durante o jornal que passava notícias de tragédias na TV. Aquilo também
era trágico. Duas pessoas, muito tempo, nenhum ganho.
-Nenhum? – ele perguntou dissimulado como se não fizesse
ideia do que estava acontecendo.
- Nada.
Pausa. Um grande silêncio se segue.
Para ela, uma pessoa de natureza nervosa, a situação é muito
incomoda. Em sua cabeça passava pelo menos cinco desfechos diferentes para
aquela discussão. Todos eles catastróficos. Para ele, um cara de caráter
indiferente, era uma pena que a programação tinha sido interrompida pelo
comercial, mas não seria má ideia comprar esse novo aparelho de barbear do
anúncio.
Ela o amava demais e era correspondida, ele também gostava
dela. Namoravam há dois anos, tinham um cachorro e um apartamento juntos. A
coisa deveria estar ficando séria. O apartamento só tinha 50m², mas parecia ter
meia volta ao mundo quando ele se fechava em seu mundinho.
- Não faça tempestade num copo d’água...
- É um dilúvio. Em alto mar!
Não eram discussões de grande magnitude. Discutir cansa e
ele sempre vivia cansado demais. Enquanto ela filosofava sobre o relacionamento
que eles quase não tinham, ele sempre que colocava uma ligeira conclusão dizia:
- Viva o momento! Carpe
Diem! – seguido de um beijo apaixonado, cheio de envolvimento que deixavam
todas as questões de lado. Deixavam as roupas por todos os lados.
E a razão dela do lado de fora.
Em alguma hora da madrugada quando todos deveriam estar
dormindo a verdade se esgueirava pela cama e deitava ao lado deles. Entre eles.
Como uma criança com pesadelos que procura seus pais em busca de proteção, só
que essa criança procurava outra coisa.
Abrir os olhos dela.
Então ela acordou num susto. Olhou em volta e percebeu que
ele não estava ao eu lado. De novo. A maioria das vezes ele não estava. O que
será que ele estava fazendo? O que será que ela
estava fazendo?
Ele estava no computador, ela estava aflita. Por isso, foi
esquentar um pouco de leite.
- Benício, minha avó já dizia: saco vazio não pára em pé.
“E mente nervosa não pára quieta”, Lúcia completou na sua
cabeça na tentativa de reformular o ditado. Lúcia sempre fora muito lúcida, mas
em matéria de ditados e rimas nunca tinha sido muito boa.
Ela dividiu o conteúdo da leiteira em duas canecas uma com
açúcar e outra com uma pitadinha de canela. Era assim que ele gostava do leite,
mas nem ao menos sabia.
- Não quero ser puxa-saco nem nada, mas... Feito com amor
até o leite é diferente – ele dizia extasiado, quando aquele sonho ainda era
dourado.
Desde então Benício não esquentou seu próprio leite, nem
nunca soube que o amor na verdade era canela. E que a canela era só mais uma
das provas de amor que ela dava todo o dia e morriam sem serem percebidas.
A caneca dele estava em cima da mesa, ela estava no sofá. De
lá ela podia ver como ele bebia e não desgrudava os olhos da tela, sem colocar
os olhos nela. Estava muito quente, ela sentiu ao beber seu primeiro gole de
leite. Seria a única coisa quente naquela noite, ela notou ao olhar a sua
volta. Era início de inverno, suas meias estavam na lavanderia, seu edredom em
cima do armário e sabia que não podia contar com um abraço.
Seus olhos abriram mais um pouco, o sono fora completamente
embora. O sonho tinha acabado. De fato, acabou há algum tempo enquanto ela se
debatia e virava para o outro lado, fechando os olhos novamente, na esperança
de voltar a dormir e continuar de onde parou. Isso geralmente funciona com
pesadelos, não com sonhos. E ela começou a aceitar.
- Nós não temos mais nada – ela declarou enérgica, se
levantando do sofá.
Sua caneca caiu no chão, se partiu em mil pedaços. Não seria
a única da noite.
-Assunto repetido.
- Não é uma declaração. É um ultimato.
No fim das contas, ela o amava demais, ele apenas gostava
dela. Nunca foi correspondida. Ele pegou suas roupas, o cachorro e muito da
dignidade de Lucia e foi embora sem fazer barulho.
Horas depois, catando os cacos da xícara que ainda estava na
sala, ela se cortou, mas não doeu, e foi aí que ela percebeu que não adiantava
chorar pelo leite derramado.